quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Ora tomem lá uma prenda de natal. Embora longe ainda e em tempos de dia das bruxas, fiquem com a estória do Lucas das obras e podem comentá-la, não custa nada e faz-me sentir importante:

O Lucas das obras

Chegou a França com 17 anos e a morada de um primo que nunca estava em casa e ninguém conhecia no bairro de barracas dos arredores de Paris, onde o desembarcaram.
Sem alternativas, alugou um quarto numa espelunca que também servia de taberna e salão de festas.
Foram-se-lhe os últimos tostões, mas na manhã seguinte já trabalhava na construção civil, abria caboucos na terra gelada e gretaram-se-lhe as mãos.
Carregou camiões com os restos das demolições de Paris em reconstrução, comprou um camião desconjuntado, em sociedade com um colega de trabalho bastante mais velho e oriundo da mesma aldeia, que só sabia assinar o nome e lhe confessara que o seu maior sonho era o de, um dia, ser rico.
Um ano depois pediu-lhe uma assinatura, num papel para o banco e transformou o documento numa venda dos 50% do amigo e associado, em seu nome.
Sem o dinheiro investido, sem negócio, o outro não o procurou, não lhe disse nada, regressou a Portugal, no mesmo dia em que foi informado oficialmente que já não era sócio do Lucas, foi no comboio que lhe passava à beira da aldeia.
Enforcou-se à noitinha, numa árvore do largo em que ficavam as casas onde ambos tinham nascido.
Sem remorsos aparentes, o Lucas comprou um segundo camião e abriu um restaurante, pôs a mulher na direcção do negócio porque, no seu entender, a família é a chave mestra da sociedade, das duas, daquela em que se vive e da outra, da que se ajusta no cartório notarial.
Entretanto tinha casado e já tinha uma filha, no ano seguinte nasceu o filho.
Mandou ir um cozinheiro de Portugal, alguém de confiança, arranjado por um tio de quem tinha sido empregado, antes de emigrar.
Os negócios prosperavam, chamou mais familiares da terra natal, que ficavam como seus empregados.
O banco emprestou-lhe dinheiro e aumentou a frota, 5 camiões em segunda mão, uma pechincha, como ele dizia, arrematados num leilão judicial.
Já comprava prédios antigos para desmantelar, alugara um terreno nos arredores de Paris e construíra barracões para os trabalhadores e para as máquinas. Aos homens alugava o espaço para dormirem, dos engenhos bastavam-lhe as mais valias.
Aproveitava madeiras e ferro que vendia e reciclava, triturava tijolos e argamassa, fazendo um composto utilizado em fundações de estradas, de caminhos de ferro e mesmo de outras construções.
Não tinha muito tempo para a família até que num dia de folga do restaurante, no regresso ao lar, à noite, não encontrou a mulher. Os filhos pequenos tinham ficado à guarda duma sobrinha que tinha em casa, com essa função.
A informação foi que a mulher tinha ido fazer as limpezas no restaurante e tratar das compras da semana.
No estabelecimento não havia ninguém, nem a limpeza fora efectuada. Dirigiu-se a casa do cozinheiro, também não estava.
Uma vizinha informou-o que o homem parecia ter partido em viagem, vira-o entrar com duas malas enormes para o táxi do Mascarenhas.
Acordou o Mascarenhas já passava da meia-noite, sabia sempre onde encontrá-lo, o homem era uma lenda nos primeiros anos da emigração.
Conduzia um velho mercedes e conduzia as jovens, belas, impacientes e recém chegadas compatriotas, a locais onde se enriquecia depressa, bastava ter cabeça fria e corpo quente, como ele gostava de dizer, alarvemente, entre duas cervejas pretas.
Além disso, sabia de tudo o que se passava na colónia portuguesa, quem chegava, quem partia, os bons negócios, onde estavam os políticos, os fugidos à tropa, esses traidores à Pátria que queriam derrubar o Poder do Senhor Professor. Dizia-se à boca pequena que era informador da PIDE.
Isso só se provou depois do 25 de Abril, mas a verdade é que até lá, o Mascarenhas era o português mais bem informado da região parisiense.
Que sim, tinha transportado o Leocádio ao aeroporto de Orly, logo de manhã, antes das 10 horas, levava duas malas grandes e parecia nervoso, mas estava sozinho, disse isto com um sorriso que não agradou ao Lucas.
Regressou a casa, os filhos dormiam a sono solto, a sala continuava cheia de familiares e amigos, inquietos. Tinham telefonado à polícia, aos hospitais, não havia notícias. A mulher do cozinheiro, contactada em Portugal, não sabia o que se passava, falara com o marido nessa semana e não notara nada de especial.
Através do Daniel da TAP conseguiu, já no dia seguinte, saber dos voos da véspera, entre as 10H00 e as 13H00.
Não havia nenhum para Portugal. Às 11H30 tinha partido um para o Rio de Janeiro.
O Daniel obteve a lista de passageiros, Leocádio Santos e Madalena Lucas, registaram-se nos lugares 22 A e 22 B.
Apanhou o voo do dia seguinte, depois de ter telefonado a um amigo do falecido pai, alguém da terra com quem se havia encontrado durante as férias, vivia no Rio onde tinha uma rede de padarias.
Quando chegou já tinham rasto do Leocádio. Um patrício levara-o de táxi para uma pensão, de outro patrício, nos arredores.
Sentado no carro do amigo, enquanto limpava o suor, Lucas pensava que o sacana do Leocádio não tinha sorte nenhuma com os táxis, se calhar não dava boas gorjetas, um pelintra.
Duas horas depois estava sentado em frente da mulher. O cozinheiro fora dar um passeio com o amigo do pai e outros amigos.
A polícia encontrou-o no dia seguinte, com um braço e duas costelas partidas. No registo da ocorrência ficou que fora assaltado e espancado por desconhecidos. Não lhe roubaram nada, mas como a autoridade lhe descobriu maconha nos bolsos, da mesma qualidade da que tiveram o cuidado de esconder no forro de uma das malas de viagem, deu entrada nos calabouços estaduais e, 6 meses depois, foi condenado a 10 anos de prisão, por tráfico de droga.
O Lucas esteve fechado, num quarto em casa do amigo, 5 horas seguidas com a Madalena. Falou-lhe nos filhos, nos camiões, nos negócios, no dinheiro que estava no banco, no futuro.
Passaram 10 dias de férias em Ipanema, num hotel de 5 estrelas, o amigo das padarias disponibilizou carro e motorista, jantaram em família 3 ou 4 vezes e resolveram montar um negócio conjunto, em Portugal, talvez construir casas, o contrário do que faço em França, alvitrou o Lucas, afastando a ideia de um dia intrujar o futuro associado, este não, pelo menos até ver. Não merece.
No regresso a Paris fechou o restaurante e abriu uma agência de viagens.
Assim, quando a mulher tivesse vontade de viajar, seria mais fácil encontrar-lhe o rasto.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Mais um dia que passa, mais uma estória que desliza pelo éter e chega de mansinho, quase sem se dar por ela, até este espaço de descoberta de sentimentos e de formas de estar.
A de hoje fala de tristeza e machismo.
Nós, os homens, temos tanto de humano quanto de irracional. Então quando nos cheira a sexo, o nosso substitui o cérebro e parte à desfilada como monstro sôfrego de alimentar um enorme estômago onde tudo se liquefaz e se mistura, sem tempo para avaliar dos paladares sublimes que, noutras circunstâncias, poderiamos usufruir.

Cá fica:

O mercador de ilusões.

Na solidão dos brejos, as fazendas são um ponto de referência para o viajante.
Há sempre um púcaro de água fresca, uma sombra, dois dedos de conversa.
Casa pequena, amanhos pobres, mas a fazendeira é jovem e vistosa.
Tem olhos tristes, sorriso esquecido na face trigueira.
Dois fedelhos ranhosos brincam por entre laranjeiras que deixam cair a flor e enchem o ar de cheiros vivos, as abelhas afadigam-se e há uma música no ar. O zumbido da Primavera.
Na parte mais fresca do alpendre, uma alcofa com um cobertor dobrado, serve de berço ao bebé, rendeu-se ao sono da tarde.
Num só olhar de relance o forasteiro tirou o retrato à situação.
Amarrou o burro aos ramos duma figueira, a escassos metros da porta de casa, com um piparote atirou o chapéu preto para trás cobrindo a nuca e desvendando o traço avermelhado, fronteira entre o tisnado do rosto e o alvo da testa estreita.
Dois olhos argutos limitam-lhe o nariz adunco que parece aninhar-se num farfalhudo bigode negro, embranquecido na poeira dos caminhos.
Ofereceu a mercadoria enquanto iniciava a abertura das goropelhas que pendiam, uma de cada lado da alimária.
Panelas de barro para uso diário, loiça mais fina, bilhas, até copos de vidro, melhores que os das lojas da capital.
Que não. Respondera a mãe dos miúdos, não precisavam de nada. Podia descansar se tal lhe aprouvera, mas não lhe desse cuidados a desfazer a carga, posto que ali não faria negócio.
Os tempos não iam de feição, o trabalho para fora minguava e má era a paga recebida.
Então não havia homem no monte, inquirira o tendeiro ambulante, só a senhora se ocupava da fazenda e dos catraios?
Apesar da pergunta a contra corrente do fio da conversa, a resposta viera célere, ingénua mas franca.
Que havia mas procurara trabalho na fábrica grande, a escassos quilómetros.
Partia de manhã, regressaria daí a poucas horas, ainda a tempo de amanhar a terra, antes do lusco-fusco.
A mulher não saíra do recato da ombreira da porta.
O homem ampara-se na carga da alimária, com o cotovelo levantado, a mão sustendo a cabeça. Tirava agora o chapéu e abanava-se com ele.
Mas que raio de homem é esse que deixa uma mulher nova e bonita, sozinha num ermo destes, atirara de chofre.
E sem dar tempo de reacção prosseguia. E cheia de filhos, são todos seus, não?
Que sim, respondera quase envergonhada.
Mas logo o orgulho de mãe lhe devolveu a compostura. E que tem você com isso, homem de Deus.
É assim a modos que a falar, não se enerve a patroa que não há ofensa na minha palavra.
Só queria dizer que homem que gosta da mulher não lhe foge durante o dia, não a abandona à sua sorte.
E ele a dar-lhe, tornara a fazendeira, olhe que a conversa já cheira a esturro e tenho mais que fazer. Ala que se faz tarde.
Voltara-lhe a coragem e a firmeza face ao estranho da situação.
Um bufarinheiro mal amanhado, armava-se em Casanova só porque a via com os filhos, sem homem que a protegesse naquela hora.
E lembrou-se das conversas que tivera com o marido aquando da decisão deste aceitar o trabalho na fábrica.
Ó homem, então e para aqui fico o dia todo, no meio dos brejos, com o vizinho mais próximo a quase um quilómetro.
Parece que tens medo que te comam, fora a resposta seca.
Tomara eu, assim via-me livre de ti e da tua raça, acrescentara o marido com um sorriso alarve, pondo fim à conversa.
Não falaram mais no assunto.
Ela cismava, muitas vezes, na solidão da sua vida, no fracasso que fora aquele casamento, nos maus tratos de que era vítima.
Mas que fazer, para onde ir?
Mulher sem trabalho e sem dinheiro não se governa. E mais a mais com 3 filhos pequenos.
Portugal, finais dos anos 50. Tempos de guerra e fome, ainda vivos nos olhos que queriam esquecer.
Era seu marido, tinham casado e o padre dissera até que a morte os separe.
Só voltara a entrar numa igreja para baptizar os filhos mas, mesmo assim, palavra de padre é para se cumprir.
Vinha-lhe agora o vendilhão com aquela conversa.
Mas que mais lhe havia de chegar. Para apoquentações já bastava a labuta da terra, a casa, os filhos.
Era, nem mais nem menos, igual à conversa de todos os homens quando pensam que a presa será fácil.
Então, não diz nada senhora, olhe que eu faço-a feliz.
A voz parecia-lhe vir de longe, do outro lado da vida.
É só uma palavra sua e eu levo-a comigo. Nunca a deixarei, vamos de terra em terra, vai correr mundo que aqui não aprende nada.
É só dizer, traz os seus filhos, ficamos primeiro na minha aldeia, uns tempos, e depois vamos os dois para o negócio.
Olhe que eu faço-a feliz, repisava com voz melíflua.
Só se lembra de ter dito para ele esperar um pouco.
Depois viu o vulto do homenzinho no enfiamento dos canos da caçadeira que mantinha sempre carregada e dependurada num prego da cozinha.
Fora só pegar-lhe, puxar os dois cães atrás e surgir na claridade com o ponto de mira na direcção do bigode farfalhudo.
Não trocaram uma palavra.
O próprio burro pôs-se ao caminho, nem sequer precisou ser tocado.
Sem olhar para trás seguiu-se-lhe o dono. Empurrou o chapéu para a frente, atabalhoadamente tornou a tapar os tachos e as malgas e nunca mais voltou para aqueles lados do brejo.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

era uma vez ...

A aprendizagem, como tudo na vida, leva o seu tempo.


Assim, não sei porquê, vejo-me com dois blogues, exactamente com o mesmo nome e os quais aguardam a minha gestão.


Não sei se os mantenha ou se me desfaça de um?


Fico, porém, ante um dilema. Qual dos blogues sacrificarei, o primeiro e de formação titubeante ou o segundo, já mais elaborado e fácil de seguir? Oh dúvida angustiante, Oh incerteza que me dilacera a alma.


Ficarei, por enquanto, a progenitar os dois mas com a esperança que possam um dia fundir-se e, entretanto, cá fica a estória que o Pardal Pardo escolheu para hoje e que tem por título:


O acidente

A Ti Albertina levantou-se às três horas da manhã, engatou o macho à carroça, carregada na véspera, de couves, batatas, cenouras, alfaces e outros produtos da terra que iria vender no mercado da cidade próxima.
O caminho ainda era longo e os primeiros a chegar ocupariam os melhores locais de venda, as melhores pedras, portanto não havia tempo a perder. Aparelhada a besta e verificada a carga, a Ti Albertina trouxe uma alcofa que instalou por detrás dela, bem aconchegada entre os repolhos e as tangerinas, como se de bem precioso se tratasse.
Era o filho, rebento ainda com menos de um ano, agasalhado nos cobertores felpudos e que iria continuar o sono dos justos, embalado pelo trotar pachorrento do macho e pelos solavancos da carroça, lá em cima as estrelas brilhantes pareciam coladas no veludo do manto negro da noite e tremeluziam como que tocadas pelo espectáculo.
A vida dos pobres é assim, desde cedo aprendem o que ela custa e criam-se ao sabor das desventuras, saltitam de mágoa em mágoa e os raros sorrisos servem apenas de curtas pausas no quotidiano cinzento, alimentado pelos altos e baixos do triste caminho de cruz que lhes é oferecido.
Raramente esperneiam e a revolta que sentem é muda, autofágica, calada no interior esconso duma existência amordaçada.
Assim era o percurso da Ti Albertina. Ela não o saberia explicar com tantas palavras complicadas, mas matutava muito no que lhe reservaria o futuro.
Davam-lhe ainda mais cuidados desde que nascera o seu primeiro filho. Teria feito bem em deitá-lo ao Mundo? Que iria ser dele?
Labutava por melhores dias, para ambos. Queria libertar-se do estigma com que se sentia marcada. Às vezes criticava o marido pela sua falta de ambição, pelos conflitos que causava com a restante família, pelo afastamento progressivo que os isolava.
Naquela madrugada sentia-se profundamente inquieta.
Não sabia se fora da discussão com o seu homem que se tinha recusado a ajudá-la nos preparativos antes da partida?
Mas não, já estava arrependida de o ter acordado. Afinal o desgraçado iria trabalhar dentro de poucas horas, para a lavra que lhe sugava o sangue, a cavar lamas antes da plantação do arroz. Trabalho arrevesado aquele. Todo o santo dia enfiados na terra enlameada, o movimento monocórdico da enxada, acima, abaixo, acima abaixo.
Quanto mais o sol brilhava, mais dura se tornava a faina. Não se sentiam os braços, nem os rins, afinal nada se sentia, nem mesmo o aguilhão dos mosquitos que defendiam o seu território de águas estagnadas.
Ficava-se assim como que anestesiado, o corpo parecia adquirir uma vida própria, independente do pensamento.
O piar dum mocho despertou-a da letargia que a invadira.
Mau agoiro, ave danada.
Até à estrada principal a viagem decorreu sem história, a luz trémula da lanterna a petróleo iluminava as pernas da condutora cobertas com um xaile protector, reflectia-se no suor que empapava os quadris do macho e semeava sombras fantasmagóricas nas árvores que bordejavam o caminho de terra batida.
Poucos metros andados na estrada alcatroada, símbolo de civilização e progresso, o drama deu-se.
Anselmo da Purificação separara-se da esposa legítima poucas horas antes.
Fartou-se de 15 anos a viver na aldeia alentejana onde o sogro, além de regedor arregimentado pelo regime então vigente, também fora o manda-chuva.
Morto o bicho, acaba-se-lhe a peçonha, dizia o povo.
Ainda o corpo do defunto estava exposto na igreja e já Anselmo tinha dito à legítima que abalaria logo a seguir ao enterro.
Não queria ficar nem mais uma hora naquela terra que lhe tinha comido a mocidade.
O sogro topara-lhe o manejo e mantivera-lhe a rédea curta. Dava à filha única apenas o suficiente para viver decentemente, com o marido que escolhera contra a vontade do pai.
O dinheiro das searas de tomate, das tiragens de cortiça, das varas de porcos e dos rebanhos de ovelhas, mantinha-o o velho em contas bancárias bem aconchegadas.
Mas Anselmo da Purificação estava também alerta. Antigo guarda-livros, além de ter guardado a gorda e desengraçada filha do patrão, guardou sempre um olho aguçado sobre a contabilidade do sogro.
Sabia quanto lhe valeria a herança, já que tivera o cuidado de casar sem separação de bens. Com a morte do lavrador disporia do suficiente para viver sem trabalhar o resto dos seus dias.
Bastava-lhe manter as aparências e voltar de 6 em 6 meses à aldeia.
Nunca fizera filhos na esposa, sempre a pensar no futuro.
Queria ter a liberdade de poder decidir. A mulher ficaria no povoado, a gerir a lavoura e as herdades. Ela gostava daquilo, não tinha por que se queixar.
Ele aterrava em Lisboa, com a fama de lavrador alentejano e a vida correr-lhe-ia de feição.
A despedida fora curta e seca.
Eu depois dou notícias e digo quando volto. Tenho de tratar da papelada e de resolver as burocracias.
Tomara o volante do carro que fora do sogro, sem aceder aos rogos dos que lhe pediam que ficasse, dormisse e partisse pela manhã, mais descansado.
Nada o demovera. Quanto mais depressa melhor. E acelerava para subtrair os quilómetros que o separavam da liberdade.

À saída duma curva aparece-lhe pela frente a carroça.
A última coisa que viu, na sua nova e curta vida de homem rico, foi a imagem da lanterna e da sua luz avermelhada que tremia.

A Ti Albertina é projectada, cai no asfalto, a carga espalha-se em todas as direcções, Anselmo da Purificação, o condutor apressado, perdeu a pressa e a vida, a Ti Albertina perdeu apenas os sentidos.
Chega a polícia, as ambulâncias, a confusão do costume, ferida e morto para o hospital, primeiros socorros... e aí a Ti Albertina, acorda, olha à volta... e grita pelo filho, ai que mataram o seu menino, geme ela ao lembrar-se da catástrofe.
Estupefacção dos médicos e da polícia, o carro das emergências voa de novo até ao local do acidente, os polícias procuram e por entre os destroços de couves, batatas e alfaces, lá descobrem a alcofa onde o bebé continuava a dormir placidamente, indiferente a tudo o que se tinha passado.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Bem mandado

Manuel Joaquim tinha 11 anos e, segundo o pai, era forte como um boi.
Ajudava a rer o sal nas marinhas, de sol a sol, e a jorna angariada contribuía para arredondar o magro pecúlio da família.
Da sua boca não saía um queixume.
Sabia-se apenas que o moço tinha sido bom aluno na escola da D. Mimi.
Escrevia rápido e sem erros e era barra no desfiar das serras e rios de Portugal, sem esquecer as linhas principais e os ramais de caminho de ferro.
Pampilhosa, Entroncamento, linha do Vouga ou do Tua, tudo na ponta da língua.
A Mestra viera mesmo à fala com a família. O garoto era esperto, com um esforço de todos até podia ir mais longe nos estudos, o Liceu, a Escola Técnica.
Só lhe resta a Escola da Vida, atalhara secamente o pai.
Então a senhora não vê que somos seis cá em casa, contando com a avó entrevada e só eu é que ganho! A mulher nem tempo tem para tratar da casa, das terras, dos dois mais pequenos, da minha mãe que já não sai da cama e ainda tem de ordenhar a vaca e levar o leite à estrada, ao camião.
Ná! O moço já sabe ler e escrever, mais do que eu, que me fiquei pelo assinar do nome. Tem que chegue.
Agora vai para as marinhas comigo, aprender um ofício que bem lhe faz.
E lá foi, como bem mandado que era.
O rodo arrastava-se pelo fundo lodoso e, nos primeiros dias, vinha mais lama que sal.
Depois, o ofício foi entrando e o ouro branco dançava-lhe aos pés.
Primeiro tinha de se esperar que a água se evaporasse e vigiar a marinha, porque a camada de sal não podia ser nem demasiado espessa, nem excessivamente fina.
Era preciso encontrar o termo certo e deixar entrar mais água dos esteiros, se necessário fosse.
Esse era trabalho que se fazia pela manhã, ao raiar do sol, quando os cristais de cloreto de sódio ainda eram amigos.
Na altura em que o sol batia de chapa nos esteiros e nas marinhas, é que era mais duro.
O calor apertava e a reverberação feria-lhe os olhos.
O pai ensinara-lhe a atar um lenço à volta da cabeça, a tapar-lhe as sobrancelhas. Assim apara-te o suor e protege os olhos.
Dava resultado enquanto o brilho vinha de cima. O pior era quando os raios se reflectiam nos cristais que estavam por terra e lhe feriam a retina.
Havia gotas de suor que lhe caíam da testa e se detinham, breves, na comissura dos lábios.
Talvez viessem misturadas com lágrimas mas, o calor do sol e o ardor do sal, misturados, nunca permitiram saber se assim era.
Durante quase um ano aprendeu a arte de marnoto e ajudou a mãe a cavar a vinha, a semear as batatas, aperfeiçoou a técnica da ordenha.
Até foi uma vez ou duas com o pai à taberna, ouvir falar os homens, como este dizia.
Mas não gostou do que ouviu. Muitos arrotos e palavrões, poucas palavras que lhe ensinassem mais que o que já sabia.
Chegada a época de carregar os barcos, o Manel Jaquim, como toda a gente lhe chamava, bem podia já com uma canastra no lombo – dizia carinhosamente o pai.
Tinha deitado corpo.
Ele tão franzino quando saíra da escola, nem parecia o mesmo.
Faz-te bem o trabalho, filho dum cabrão! Rematava o velho, esquecido que falava do filho, ou talvez não.
Tinha mais 20 anos que a mulher e a diferença saltava aos olhos. Nunca tinha querido casar.
A mãe tratara-lhe de casa e da vida até aos 45. O viço da mocidade afogara-o em dias de feira na aldeia, com as meninas das barracas de tiro, ou quando ia à cidade, de longe em longe.
Depois aparecera-lhe a moça. O namorado enganara-a e nas terras à volta ninguém mais encontraria que a quisesse.
A mãe ajudara-o a tomar uma decisão. Olha que eu já estou velha, não posso com uma gata pelo rabo e tu vais pelo mesmo caminho. Qualquer dia não tens quem cuide de ti.
Aprazaram a data e juntaram os trapos no fim do Verão, depois das colheitas. Só foram ao registo em Janeiro seguinte, já ela estava grávida do Manel Jaquim.
Fizera-lhe mais dois filhos e há muito que já não se encontravam na cama.
Ele habituara-se à situação. Quanto a ela não sabia, nem se preocupava com isso.
O apoquento agora era com os filhos. À medida que a idade lhe avançava no corpo, cavava-se-lhe a dúvida: e se eu morro com eles tão novos. Grande asneira fiz em ser pai tão tarde.
E redobrava de esforços em ensinar-lhes o pouco que sabia.
À força se fosse caso disso.
E foi assim que o Manel Jaquim lá foi vergar-se sob as canastras de 40 quilos de sal.
Com a tua idade já eu guardava porcos e carregava sacas de boleta às costas.
Perpetuava-se a tradição familiar.
O pai gastara-se nos montados, subindo escarpas, descendo a vales. Apascentava a vara do patrão, a troco de um bácoro por ano e calçara os primeiros sapatos de cabedal no dia em que fora às sortes, em Santarém.
O filho iniciava-se agora na arte dos trabalhos forçados.
Saltava do monte onde o ajudaram a ajeitar o carrego à cabeça, corria sobre o valado de lama seca, atravessava a prancha oscilante e deitava o conteúdo da canastra para o fundo do saveiro que, na maré baixa, encalhava no lodo do esteiro.
À terceira viagem, caiu o sal, a canastra e o Manel Jaquim.
Misturaram-se todos no fundo húmido do barco.
Os ossos da anca não resistiram ao esforço.
O médico disse qualquer coisa como, ainda não estavam feitos.
Feito, ficou o Manel Jaquim.
Nunca mais largou a muleta.