terça-feira, 21 de outubro de 2008

era uma vez ...

A aprendizagem, como tudo na vida, leva o seu tempo.


Assim, não sei porquê, vejo-me com dois blogues, exactamente com o mesmo nome e os quais aguardam a minha gestão.


Não sei se os mantenha ou se me desfaça de um?


Fico, porém, ante um dilema. Qual dos blogues sacrificarei, o primeiro e de formação titubeante ou o segundo, já mais elaborado e fácil de seguir? Oh dúvida angustiante, Oh incerteza que me dilacera a alma.


Ficarei, por enquanto, a progenitar os dois mas com a esperança que possam um dia fundir-se e, entretanto, cá fica a estória que o Pardal Pardo escolheu para hoje e que tem por título:


O acidente

A Ti Albertina levantou-se às três horas da manhã, engatou o macho à carroça, carregada na véspera, de couves, batatas, cenouras, alfaces e outros produtos da terra que iria vender no mercado da cidade próxima.
O caminho ainda era longo e os primeiros a chegar ocupariam os melhores locais de venda, as melhores pedras, portanto não havia tempo a perder. Aparelhada a besta e verificada a carga, a Ti Albertina trouxe uma alcofa que instalou por detrás dela, bem aconchegada entre os repolhos e as tangerinas, como se de bem precioso se tratasse.
Era o filho, rebento ainda com menos de um ano, agasalhado nos cobertores felpudos e que iria continuar o sono dos justos, embalado pelo trotar pachorrento do macho e pelos solavancos da carroça, lá em cima as estrelas brilhantes pareciam coladas no veludo do manto negro da noite e tremeluziam como que tocadas pelo espectáculo.
A vida dos pobres é assim, desde cedo aprendem o que ela custa e criam-se ao sabor das desventuras, saltitam de mágoa em mágoa e os raros sorrisos servem apenas de curtas pausas no quotidiano cinzento, alimentado pelos altos e baixos do triste caminho de cruz que lhes é oferecido.
Raramente esperneiam e a revolta que sentem é muda, autofágica, calada no interior esconso duma existência amordaçada.
Assim era o percurso da Ti Albertina. Ela não o saberia explicar com tantas palavras complicadas, mas matutava muito no que lhe reservaria o futuro.
Davam-lhe ainda mais cuidados desde que nascera o seu primeiro filho. Teria feito bem em deitá-lo ao Mundo? Que iria ser dele?
Labutava por melhores dias, para ambos. Queria libertar-se do estigma com que se sentia marcada. Às vezes criticava o marido pela sua falta de ambição, pelos conflitos que causava com a restante família, pelo afastamento progressivo que os isolava.
Naquela madrugada sentia-se profundamente inquieta.
Não sabia se fora da discussão com o seu homem que se tinha recusado a ajudá-la nos preparativos antes da partida?
Mas não, já estava arrependida de o ter acordado. Afinal o desgraçado iria trabalhar dentro de poucas horas, para a lavra que lhe sugava o sangue, a cavar lamas antes da plantação do arroz. Trabalho arrevesado aquele. Todo o santo dia enfiados na terra enlameada, o movimento monocórdico da enxada, acima, abaixo, acima abaixo.
Quanto mais o sol brilhava, mais dura se tornava a faina. Não se sentiam os braços, nem os rins, afinal nada se sentia, nem mesmo o aguilhão dos mosquitos que defendiam o seu território de águas estagnadas.
Ficava-se assim como que anestesiado, o corpo parecia adquirir uma vida própria, independente do pensamento.
O piar dum mocho despertou-a da letargia que a invadira.
Mau agoiro, ave danada.
Até à estrada principal a viagem decorreu sem história, a luz trémula da lanterna a petróleo iluminava as pernas da condutora cobertas com um xaile protector, reflectia-se no suor que empapava os quadris do macho e semeava sombras fantasmagóricas nas árvores que bordejavam o caminho de terra batida.
Poucos metros andados na estrada alcatroada, símbolo de civilização e progresso, o drama deu-se.
Anselmo da Purificação separara-se da esposa legítima poucas horas antes.
Fartou-se de 15 anos a viver na aldeia alentejana onde o sogro, além de regedor arregimentado pelo regime então vigente, também fora o manda-chuva.
Morto o bicho, acaba-se-lhe a peçonha, dizia o povo.
Ainda o corpo do defunto estava exposto na igreja e já Anselmo tinha dito à legítima que abalaria logo a seguir ao enterro.
Não queria ficar nem mais uma hora naquela terra que lhe tinha comido a mocidade.
O sogro topara-lhe o manejo e mantivera-lhe a rédea curta. Dava à filha única apenas o suficiente para viver decentemente, com o marido que escolhera contra a vontade do pai.
O dinheiro das searas de tomate, das tiragens de cortiça, das varas de porcos e dos rebanhos de ovelhas, mantinha-o o velho em contas bancárias bem aconchegadas.
Mas Anselmo da Purificação estava também alerta. Antigo guarda-livros, além de ter guardado a gorda e desengraçada filha do patrão, guardou sempre um olho aguçado sobre a contabilidade do sogro.
Sabia quanto lhe valeria a herança, já que tivera o cuidado de casar sem separação de bens. Com a morte do lavrador disporia do suficiente para viver sem trabalhar o resto dos seus dias.
Bastava-lhe manter as aparências e voltar de 6 em 6 meses à aldeia.
Nunca fizera filhos na esposa, sempre a pensar no futuro.
Queria ter a liberdade de poder decidir. A mulher ficaria no povoado, a gerir a lavoura e as herdades. Ela gostava daquilo, não tinha por que se queixar.
Ele aterrava em Lisboa, com a fama de lavrador alentejano e a vida correr-lhe-ia de feição.
A despedida fora curta e seca.
Eu depois dou notícias e digo quando volto. Tenho de tratar da papelada e de resolver as burocracias.
Tomara o volante do carro que fora do sogro, sem aceder aos rogos dos que lhe pediam que ficasse, dormisse e partisse pela manhã, mais descansado.
Nada o demovera. Quanto mais depressa melhor. E acelerava para subtrair os quilómetros que o separavam da liberdade.

À saída duma curva aparece-lhe pela frente a carroça.
A última coisa que viu, na sua nova e curta vida de homem rico, foi a imagem da lanterna e da sua luz avermelhada que tremia.

A Ti Albertina é projectada, cai no asfalto, a carga espalha-se em todas as direcções, Anselmo da Purificação, o condutor apressado, perdeu a pressa e a vida, a Ti Albertina perdeu apenas os sentidos.
Chega a polícia, as ambulâncias, a confusão do costume, ferida e morto para o hospital, primeiros socorros... e aí a Ti Albertina, acorda, olha à volta... e grita pelo filho, ai que mataram o seu menino, geme ela ao lembrar-se da catástrofe.
Estupefacção dos médicos e da polícia, o carro das emergências voa de novo até ao local do acidente, os polícias procuram e por entre os destroços de couves, batatas e alfaces, lá descobrem a alcofa onde o bebé continuava a dormir placidamente, indiferente a tudo o que se tinha passado.

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