Ora tomem lá uma prenda de natal. Embora longe ainda e em tempos de dia das bruxas, fiquem com a estória do Lucas das obras e podem comentá-la, não custa nada e faz-me sentir importante:
O Lucas das obras
Chegou a França com 17 anos e a morada de um primo que nunca estava em casa e ninguém conhecia no bairro de barracas dos arredores de Paris, onde o desembarcaram.
Sem alternativas, alugou um quarto numa espelunca que também servia de taberna e salão de festas.
Foram-se-lhe os últimos tostões, mas na manhã seguinte já trabalhava na construção civil, abria caboucos na terra gelada e gretaram-se-lhe as mãos.
Carregou camiões com os restos das demolições de Paris em reconstrução, comprou um camião desconjuntado, em sociedade com um colega de trabalho bastante mais velho e oriundo da mesma aldeia, que só sabia assinar o nome e lhe confessara que o seu maior sonho era o de, um dia, ser rico.
Um ano depois pediu-lhe uma assinatura, num papel para o banco e transformou o documento numa venda dos 50% do amigo e associado, em seu nome.
Sem o dinheiro investido, sem negócio, o outro não o procurou, não lhe disse nada, regressou a Portugal, no mesmo dia em que foi informado oficialmente que já não era sócio do Lucas, foi no comboio que lhe passava à beira da aldeia.
Enforcou-se à noitinha, numa árvore do largo em que ficavam as casas onde ambos tinham nascido.
Sem remorsos aparentes, o Lucas comprou um segundo camião e abriu um restaurante, pôs a mulher na direcção do negócio porque, no seu entender, a família é a chave mestra da sociedade, das duas, daquela em que se vive e da outra, da que se ajusta no cartório notarial.
Entretanto tinha casado e já tinha uma filha, no ano seguinte nasceu o filho.
Mandou ir um cozinheiro de Portugal, alguém de confiança, arranjado por um tio de quem tinha sido empregado, antes de emigrar.
Os negócios prosperavam, chamou mais familiares da terra natal, que ficavam como seus empregados.
O banco emprestou-lhe dinheiro e aumentou a frota, 5 camiões em segunda mão, uma pechincha, como ele dizia, arrematados num leilão judicial.
Já comprava prédios antigos para desmantelar, alugara um terreno nos arredores de Paris e construíra barracões para os trabalhadores e para as máquinas. Aos homens alugava o espaço para dormirem, dos engenhos bastavam-lhe as mais valias.
Aproveitava madeiras e ferro que vendia e reciclava, triturava tijolos e argamassa, fazendo um composto utilizado em fundações de estradas, de caminhos de ferro e mesmo de outras construções.
Não tinha muito tempo para a família até que num dia de folga do restaurante, no regresso ao lar, à noite, não encontrou a mulher. Os filhos pequenos tinham ficado à guarda duma sobrinha que tinha em casa, com essa função.
A informação foi que a mulher tinha ido fazer as limpezas no restaurante e tratar das compras da semana.
No estabelecimento não havia ninguém, nem a limpeza fora efectuada. Dirigiu-se a casa do cozinheiro, também não estava.
Uma vizinha informou-o que o homem parecia ter partido em viagem, vira-o entrar com duas malas enormes para o táxi do Mascarenhas.
Acordou o Mascarenhas já passava da meia-noite, sabia sempre onde encontrá-lo, o homem era uma lenda nos primeiros anos da emigração.
Conduzia um velho mercedes e conduzia as jovens, belas, impacientes e recém chegadas compatriotas, a locais onde se enriquecia depressa, bastava ter cabeça fria e corpo quente, como ele gostava de dizer, alarvemente, entre duas cervejas pretas.
Além disso, sabia de tudo o que se passava na colónia portuguesa, quem chegava, quem partia, os bons negócios, onde estavam os políticos, os fugidos à tropa, esses traidores à Pátria que queriam derrubar o Poder do Senhor Professor. Dizia-se à boca pequena que era informador da PIDE.
Isso só se provou depois do 25 de Abril, mas a verdade é que até lá, o Mascarenhas era o português mais bem informado da região parisiense.
Que sim, tinha transportado o Leocádio ao aeroporto de Orly, logo de manhã, antes das 10 horas, levava duas malas grandes e parecia nervoso, mas estava sozinho, disse isto com um sorriso que não agradou ao Lucas.
Regressou a casa, os filhos dormiam a sono solto, a sala continuava cheia de familiares e amigos, inquietos. Tinham telefonado à polícia, aos hospitais, não havia notícias. A mulher do cozinheiro, contactada em Portugal, não sabia o que se passava, falara com o marido nessa semana e não notara nada de especial.
Através do Daniel da TAP conseguiu, já no dia seguinte, saber dos voos da véspera, entre as 10H00 e as 13H00.
Não havia nenhum para Portugal. Às 11H30 tinha partido um para o Rio de Janeiro.
O Daniel obteve a lista de passageiros, Leocádio Santos e Madalena Lucas, registaram-se nos lugares 22 A e 22 B.
Apanhou o voo do dia seguinte, depois de ter telefonado a um amigo do falecido pai, alguém da terra com quem se havia encontrado durante as férias, vivia no Rio onde tinha uma rede de padarias.
Quando chegou já tinham rasto do Leocádio. Um patrício levara-o de táxi para uma pensão, de outro patrício, nos arredores.
Sentado no carro do amigo, enquanto limpava o suor, Lucas pensava que o sacana do Leocádio não tinha sorte nenhuma com os táxis, se calhar não dava boas gorjetas, um pelintra.
Duas horas depois estava sentado em frente da mulher. O cozinheiro fora dar um passeio com o amigo do pai e outros amigos.
A polícia encontrou-o no dia seguinte, com um braço e duas costelas partidas. No registo da ocorrência ficou que fora assaltado e espancado por desconhecidos. Não lhe roubaram nada, mas como a autoridade lhe descobriu maconha nos bolsos, da mesma qualidade da que tiveram o cuidado de esconder no forro de uma das malas de viagem, deu entrada nos calabouços estaduais e, 6 meses depois, foi condenado a 10 anos de prisão, por tráfico de droga.
O Lucas esteve fechado, num quarto em casa do amigo, 5 horas seguidas com a Madalena. Falou-lhe nos filhos, nos camiões, nos negócios, no dinheiro que estava no banco, no futuro.
Passaram 10 dias de férias em Ipanema, num hotel de 5 estrelas, o amigo das padarias disponibilizou carro e motorista, jantaram em família 3 ou 4 vezes e resolveram montar um negócio conjunto, em Portugal, talvez construir casas, o contrário do que faço em França, alvitrou o Lucas, afastando a ideia de um dia intrujar o futuro associado, este não, pelo menos até ver. Não merece.
No regresso a Paris fechou o restaurante e abriu uma agência de viagens.
Assim, quando a mulher tivesse vontade de viajar, seria mais fácil encontrar-lhe o rasto.
quinta-feira, 30 de outubro de 2008
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