Mais um dia que passa, mais uma estória que desliza pelo éter e chega de mansinho, quase sem se dar por ela, até este espaço de descoberta de sentimentos e de formas de estar.
A de hoje fala de tristeza e machismo.
Nós, os homens, temos tanto de humano quanto de irracional. Então quando nos cheira a sexo, o nosso substitui o cérebro e parte à desfilada como monstro sôfrego de alimentar um enorme estômago onde tudo se liquefaz e se mistura, sem tempo para avaliar dos paladares sublimes que, noutras circunstâncias, poderiamos usufruir.
Cá fica:
O mercador de ilusões.
Na solidão dos brejos, as fazendas são um ponto de referência para o viajante.
Há sempre um púcaro de água fresca, uma sombra, dois dedos de conversa.
Casa pequena, amanhos pobres, mas a fazendeira é jovem e vistosa.
Tem olhos tristes, sorriso esquecido na face trigueira.
Dois fedelhos ranhosos brincam por entre laranjeiras que deixam cair a flor e enchem o ar de cheiros vivos, as abelhas afadigam-se e há uma música no ar. O zumbido da Primavera.
Na parte mais fresca do alpendre, uma alcofa com um cobertor dobrado, serve de berço ao bebé, rendeu-se ao sono da tarde.
Num só olhar de relance o forasteiro tirou o retrato à situação.
Amarrou o burro aos ramos duma figueira, a escassos metros da porta de casa, com um piparote atirou o chapéu preto para trás cobrindo a nuca e desvendando o traço avermelhado, fronteira entre o tisnado do rosto e o alvo da testa estreita.
Dois olhos argutos limitam-lhe o nariz adunco que parece aninhar-se num farfalhudo bigode negro, embranquecido na poeira dos caminhos.
Ofereceu a mercadoria enquanto iniciava a abertura das goropelhas que pendiam, uma de cada lado da alimária.
Panelas de barro para uso diário, loiça mais fina, bilhas, até copos de vidro, melhores que os das lojas da capital.
Que não. Respondera a mãe dos miúdos, não precisavam de nada. Podia descansar se tal lhe aprouvera, mas não lhe desse cuidados a desfazer a carga, posto que ali não faria negócio.
Os tempos não iam de feição, o trabalho para fora minguava e má era a paga recebida.
Então não havia homem no monte, inquirira o tendeiro ambulante, só a senhora se ocupava da fazenda e dos catraios?
Apesar da pergunta a contra corrente do fio da conversa, a resposta viera célere, ingénua mas franca.
Que havia mas procurara trabalho na fábrica grande, a escassos quilómetros.
Partia de manhã, regressaria daí a poucas horas, ainda a tempo de amanhar a terra, antes do lusco-fusco.
A mulher não saíra do recato da ombreira da porta.
O homem ampara-se na carga da alimária, com o cotovelo levantado, a mão sustendo a cabeça. Tirava agora o chapéu e abanava-se com ele.
Mas que raio de homem é esse que deixa uma mulher nova e bonita, sozinha num ermo destes, atirara de chofre.
E sem dar tempo de reacção prosseguia. E cheia de filhos, são todos seus, não?
Que sim, respondera quase envergonhada.
Mas logo o orgulho de mãe lhe devolveu a compostura. E que tem você com isso, homem de Deus.
É assim a modos que a falar, não se enerve a patroa que não há ofensa na minha palavra.
Só queria dizer que homem que gosta da mulher não lhe foge durante o dia, não a abandona à sua sorte.
E ele a dar-lhe, tornara a fazendeira, olhe que a conversa já cheira a esturro e tenho mais que fazer. Ala que se faz tarde.
Voltara-lhe a coragem e a firmeza face ao estranho da situação.
Um bufarinheiro mal amanhado, armava-se em Casanova só porque a via com os filhos, sem homem que a protegesse naquela hora.
E lembrou-se das conversas que tivera com o marido aquando da decisão deste aceitar o trabalho na fábrica.
Ó homem, então e para aqui fico o dia todo, no meio dos brejos, com o vizinho mais próximo a quase um quilómetro.
Parece que tens medo que te comam, fora a resposta seca.
Tomara eu, assim via-me livre de ti e da tua raça, acrescentara o marido com um sorriso alarve, pondo fim à conversa.
Não falaram mais no assunto.
Ela cismava, muitas vezes, na solidão da sua vida, no fracasso que fora aquele casamento, nos maus tratos de que era vítima.
Mas que fazer, para onde ir?
Mulher sem trabalho e sem dinheiro não se governa. E mais a mais com 3 filhos pequenos.
Portugal, finais dos anos 50. Tempos de guerra e fome, ainda vivos nos olhos que queriam esquecer.
Era seu marido, tinham casado e o padre dissera até que a morte os separe.
Só voltara a entrar numa igreja para baptizar os filhos mas, mesmo assim, palavra de padre é para se cumprir.
Vinha-lhe agora o vendilhão com aquela conversa.
Mas que mais lhe havia de chegar. Para apoquentações já bastava a labuta da terra, a casa, os filhos.
Era, nem mais nem menos, igual à conversa de todos os homens quando pensam que a presa será fácil.
Então, não diz nada senhora, olhe que eu faço-a feliz.
A voz parecia-lhe vir de longe, do outro lado da vida.
É só uma palavra sua e eu levo-a comigo. Nunca a deixarei, vamos de terra em terra, vai correr mundo que aqui não aprende nada.
É só dizer, traz os seus filhos, ficamos primeiro na minha aldeia, uns tempos, e depois vamos os dois para o negócio.
Olhe que eu faço-a feliz, repisava com voz melíflua.
Só se lembra de ter dito para ele esperar um pouco.
Depois viu o vulto do homenzinho no enfiamento dos canos da caçadeira que mantinha sempre carregada e dependurada num prego da cozinha.
Fora só pegar-lhe, puxar os dois cães atrás e surgir na claridade com o ponto de mira na direcção do bigode farfalhudo.
Não trocaram uma palavra.
O próprio burro pôs-se ao caminho, nem sequer precisou ser tocado.
Sem olhar para trás seguiu-se-lhe o dono. Empurrou o chapéu para a frente, atabalhoadamente tornou a tapar os tachos e as malgas e nunca mais voltou para aqueles lados do brejo.
quinta-feira, 23 de outubro de 2008
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário