Manuel Joaquim tinha 11 anos e, segundo o pai, era forte como um boi.
Ajudava a rer o sal nas marinhas, de sol a sol, e a jorna angariada contribuía para arredondar o magro pecúlio da família.
Da sua boca não saía um queixume.
Sabia-se apenas que o moço tinha sido bom aluno na escola da D. Mimi.
Escrevia rápido e sem erros e era barra no desfiar das serras e rios de Portugal, sem esquecer as linhas principais e os ramais de caminho de ferro.
Pampilhosa, Entroncamento, linha do Vouga ou do Tua, tudo na ponta da língua.
A Mestra viera mesmo à fala com a família. O garoto era esperto, com um esforço de todos até podia ir mais longe nos estudos, o Liceu, a Escola Técnica.
Só lhe resta a Escola da Vida, atalhara secamente o pai.
Então a senhora não vê que somos seis cá em casa, contando com a avó entrevada e só eu é que ganho! A mulher nem tempo tem para tratar da casa, das terras, dos dois mais pequenos, da minha mãe que já não sai da cama e ainda tem de ordenhar a vaca e levar o leite à estrada, ao camião.
Ná! O moço já sabe ler e escrever, mais do que eu, que me fiquei pelo assinar do nome. Tem que chegue.
Agora vai para as marinhas comigo, aprender um ofício que bem lhe faz.
E lá foi, como bem mandado que era.
O rodo arrastava-se pelo fundo lodoso e, nos primeiros dias, vinha mais lama que sal.
Depois, o ofício foi entrando e o ouro branco dançava-lhe aos pés.
Primeiro tinha de se esperar que a água se evaporasse e vigiar a marinha, porque a camada de sal não podia ser nem demasiado espessa, nem excessivamente fina.
Era preciso encontrar o termo certo e deixar entrar mais água dos esteiros, se necessário fosse.
Esse era trabalho que se fazia pela manhã, ao raiar do sol, quando os cristais de cloreto de sódio ainda eram amigos.
Na altura em que o sol batia de chapa nos esteiros e nas marinhas, é que era mais duro.
O calor apertava e a reverberação feria-lhe os olhos.
O pai ensinara-lhe a atar um lenço à volta da cabeça, a tapar-lhe as sobrancelhas. Assim apara-te o suor e protege os olhos.
Dava resultado enquanto o brilho vinha de cima. O pior era quando os raios se reflectiam nos cristais que estavam por terra e lhe feriam a retina.
Havia gotas de suor que lhe caíam da testa e se detinham, breves, na comissura dos lábios.
Talvez viessem misturadas com lágrimas mas, o calor do sol e o ardor do sal, misturados, nunca permitiram saber se assim era.
Durante quase um ano aprendeu a arte de marnoto e ajudou a mãe a cavar a vinha, a semear as batatas, aperfeiçoou a técnica da ordenha.
Até foi uma vez ou duas com o pai à taberna, ouvir falar os homens, como este dizia.
Mas não gostou do que ouviu. Muitos arrotos e palavrões, poucas palavras que lhe ensinassem mais que o que já sabia.
Chegada a época de carregar os barcos, o Manel Jaquim, como toda a gente lhe chamava, bem podia já com uma canastra no lombo – dizia carinhosamente o pai.
Tinha deitado corpo.
Ele tão franzino quando saíra da escola, nem parecia o mesmo.
Faz-te bem o trabalho, filho dum cabrão! Rematava o velho, esquecido que falava do filho, ou talvez não.
Tinha mais 20 anos que a mulher e a diferença saltava aos olhos. Nunca tinha querido casar.
A mãe tratara-lhe de casa e da vida até aos 45. O viço da mocidade afogara-o em dias de feira na aldeia, com as meninas das barracas de tiro, ou quando ia à cidade, de longe em longe.
Depois aparecera-lhe a moça. O namorado enganara-a e nas terras à volta ninguém mais encontraria que a quisesse.
A mãe ajudara-o a tomar uma decisão. Olha que eu já estou velha, não posso com uma gata pelo rabo e tu vais pelo mesmo caminho. Qualquer dia não tens quem cuide de ti.
Aprazaram a data e juntaram os trapos no fim do Verão, depois das colheitas. Só foram ao registo em Janeiro seguinte, já ela estava grávida do Manel Jaquim.
Fizera-lhe mais dois filhos e há muito que já não se encontravam na cama.
Ele habituara-se à situação. Quanto a ela não sabia, nem se preocupava com isso.
O apoquento agora era com os filhos. À medida que a idade lhe avançava no corpo, cavava-se-lhe a dúvida: e se eu morro com eles tão novos. Grande asneira fiz em ser pai tão tarde.
E redobrava de esforços em ensinar-lhes o pouco que sabia.
À força se fosse caso disso.
E foi assim que o Manel Jaquim lá foi vergar-se sob as canastras de 40 quilos de sal.
Com a tua idade já eu guardava porcos e carregava sacas de boleta às costas.
Perpetuava-se a tradição familiar.
O pai gastara-se nos montados, subindo escarpas, descendo a vales. Apascentava a vara do patrão, a troco de um bácoro por ano e calçara os primeiros sapatos de cabedal no dia em que fora às sortes, em Santarém.
O filho iniciava-se agora na arte dos trabalhos forçados.
Saltava do monte onde o ajudaram a ajeitar o carrego à cabeça, corria sobre o valado de lama seca, atravessava a prancha oscilante e deitava o conteúdo da canastra para o fundo do saveiro que, na maré baixa, encalhava no lodo do esteiro.
À terceira viagem, caiu o sal, a canastra e o Manel Jaquim.
Misturaram-se todos no fundo húmido do barco.
Os ossos da anca não resistiram ao esforço.
O médico disse qualquer coisa como, ainda não estavam feitos.
Feito, ficou o Manel Jaquim.
Nunca mais largou a muleta.
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
Assinar:
Postar comentários (Atom)
2 comentários:
CONTINUAS A ESCREVER BEM
Há um livro para publicar?
beijos
alfazema
sem duvida um escrita bem bonita de um espirito cristalino. força amigo
Postar um comentário